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Projeto de alfabetização para crianças tem apoio na filosofia em escola catarinense
Ciclo de alfabetização deve prosseguir sem interrupção.
Postado em 2016-08-09

As 17 crianças chegaram ao segundo ano escolar sabendo ler apenas umas poucas palavras e sem interesse pelas histórias dos livros infantis. “Faltava o brilho nos olhos, a ousadia para arriscar, para se expor em tentativas de acertos e erros; enfim, faltava o querer”, descreve a professora alfabetizadora Rosângela Kirst da Silveira ao conhecer a nova turma, no início do ano letivo de 2015. Era preciso pensar um projeto que estimulasse o gosto pela leitura e que desse sentido àquelas poucas palavras e frases que as crianças aprenderam a soletrar. Nascia, assim, o projeto pedagógico e filosófico Quanto Tempo o Tempo Tem?, desenvolvido na Escola Municipal de Educação Básica Coronel Antônio Lehmkuhl, em Águas Mornas, município de 6,1 mil habitantes, de Santa Catarina.

Além de desenvolver nas crianças as habilidades e o hábito da leitura, o projeto contemplava os domínios de aprendizagem esperados para alunos daquela faixa etária. A tradicional roda de leitura — um círculo no centro da sala de aula, formado pelos alunos e a professora — foi a estratégia adotada para estabelecer a rotina. Antes de abrirem os livros, as crianças foram desafiadas, com indagações, a pensar e a imaginar. “Quanto tempo o tempo tem?”

Essa foi apenas a primeira pergunta. A professora logo apresentou mais questões desafiadoras: “Você já desejou que hoje fosse amanhã e que ontem pudesse ser hoje?”; “A morte tem alguma relação com o tempo?”; “As coisas e objetos se transformam com o tempo?”; “Você já pensou em construir uma máquina que pudesse viajar no tempo?”; “Podemos pegar o tempo e medi-lo?”. E enfim a pergunta final, que instiga os alunos a querer abrir os livros e a iniciar o percurso da leitura e da alfabetização: “Que tal caminhar comigo pelas fronteiras do tempo, buscando respostas para as perguntas?”

Descoberta — Segundo a professora, que tem dez anos de experiência como alfabetizadora, as crianças gostam de desafios, de perguntas, de mistérios. “Principalmente se essas perguntas estiverem relacionadas à vida delas e puderem caber em suas imaginações”, explica. Não demorou muito tempo para que as crianças entre 6 e 7 anos se interessassem pelos livros. “Nessa faixa etária, as crianças estão desenvolvendo a capacidade de compreensão do mundo, tendo como meio básico a leitura e a escrita. Dessa forma, a leitura é um instrumento importante para a descoberta do mundo”, afirma. “Desenvolver a habilidade da leitura é o objetivo central de uma professora alfabetizadora.”

Mais do que terminar o ano sabendo ler, o propósito do projeto era encontrar o gosto e o prazer pelos livros. Assim, a leitura não se tornaria uma obrigação e resultaria na formação de novos leitores. “Para que esse processo ocorra, descobri que é necessário fazer um trabalho que envolva os alunos”, diz. “Então, sempre trabalho com projetos interdisciplinares que contemplem a participação ativa de todo o grupo.”

Segundo a professora, a roda de leitura não apenas organiza um espaço permanente para a leitura interativa como contribui para que todas as crianças entendam o texto lido e se posicionem de forma reflexiva.

Embora a escola não tenha espaço para uma biblioteca, a professora usou na roda de leitura as obras paradidáticas do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) do Ministério da Educação e livros que as crianças tinham em casa ou colaborações dos professores. Em comum, todos os livros guardavam histórias que ajudavam a responder à pergunta-base do projeto pedagógico: “Quanto tempo o tempo tem?”. Entre os títulos selecionados: Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll; O Metrônomo Mágico, o Tempo que Passa, de Christian Grenier; Gabi, Perdi a Hora, de João Basílio, e Gente de Muitos Anos, de Malô Carvalho, entre outros.

À medida que os livros eram lidos, novas perguntas surgiam: “Existem outros mundos que não conhecemos, como o da Alice?”

A turma das 17 crianças do segundo ano, muitas delas moradoras na zona rural do município, entendeu que, apesar das tentativas da ciência para as viagens no tempo, até agora elas somente são possíveis nos filmes, nos livros e na imaginação. Nesse contexto, inspirados no livro sobre o mundo de Alice, os pequenos foram convidados a um chá com bolachinhas e charadas para os colegas na sala de aula. As bolachinhas foram feitas pelos próprios alunos e, assim, trabalhou-se um outro gênero textual, o das receitas, e inseriu-se no projeto a matemática e um pouco da cultura e da geografia do mundo. Afinal, onde fica a Inglaterra, país do autor de Alice?

Filósofo — Dentro do espírito filosófico do projeto, a professora ajudou a turma a construir um boneco representativo do filósofo grego Tales de Mileto, que acolhe aqueles que querem pensar. “A casa do Tales ou a casa do tempo, como as crianças a chamavam, foi construída com caixinhas de leite e foi o grande orgulho da turma”, conta a professora. Nessa fase, os alunos conheceram o pensamento de Tales de Mileto e sua descoberta sobre a “constatação da passagem do tempo através das modificações das coisas da natureza”.  Respondia-se, assim, a mais uma das perguntas desafiadoras feitas pela professora. E depois, mais uma e outra mais.

“Eu disse às crianças que o filósofo Tales nos mostrou o quanto é importante observar as coisas e pensar sobre elas, e aí descobrimos que sentar em roda para ler e pensar não era uma coisa nova”, afirma. “Aprendemos que as pessoas sentam-se em roda há muito tempo, que é uma antiga organização humana para reunir grupos que fazem coisas juntas ou para tratar do interesse de todos. É na frente da casa desse filósofo, em um tapete aconchegante, que as nossas rodas de leitura acontecem.”

Após as rodas de leitura, o projeto foi enriquecido com pesquisas sobre instrumentos de medida de tempo, como o relógio de sol, a ampulheta, a clepsidra ou relógio de água, a linha do tempo e o relógio de pêndulo. “Nesse momento do projeto, toda a escola já conhecia o Tales e o nosso projeto sobre o tempo. Começamos a receber visitas de professores e de outros alunos dispostos a interagir”, conta Rosângela. O projeto filosófico sobre o tempo, com o propósito de acelerar a alfabetização, traduziu-se, assim, em multidisciplinar.

“A casa do Tales passou a ser um espaço de encontro para leitura, e a participação na roda resultou na habilidade de falar e ler em público”, conta a professora, que teve o projeto pedagógico reconhecido como iniciativa de sucesso em algumas premiações, entre elas o projeto Viva Leitura, promovido pelo MEC e pelo Ministério da Cultura.

“Em 2016, continuo como professora dessa turma e consigo visualizar o quanto ela evoluiu”, diz. “Como educadora, venho testemunhando o quanto as rodas de leitura contribuem para um comportamento leitor significativo. Eu não poderia estar mais feliz com o resultado do nosso trabalho.”

Rovênia Amorim

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